Em meados da década de 70 nos mudamos para a casa de Viamão.
Era uma casa de material pintada de rosa antigo. Tipo colonial, com
paredes largas. Ficava em frente a praça e tinha uma alma forte e consistente.
Na parte da frente ficavam os quartos e a sala de estar. Na parte de
trás a cozinha grande e a garagem. Abaixo, ficava a lavanderia e a adega com os
barris e garrafões de vinho, e nos fundos, em declive, o pequeno Sítio.
Terra boa e antiga, com pedras imensas, figueiras centenárias, poço de
água, um taquaral amarelo, uma piscina rústica, plantações de verduras,
legumes, pomares de frutas e uma reunião de pássaros coloridos cantando pelas
manhãs.
Havia também muitos animais. Cães, gatos, papagaio, pintos, galinhas,
galos, patos, codornas, coelhos, porcos, uma vaca que tirávamos algum leite, e
lagartos enormes de até um metro soltos e caminhando livres pelo terreno fértil
em busca de alimento enquanto o sol amarelado os iluminava.
Entre a plantação e os animais havia o galinheiro, o galpão das ferramentas
e sementes, a casa dos coelhos, embaixo da figueira, o chiqueiro dos porcos e a pequena casa do seu Kurtz, um alemão
aposentado pela segunda guerra mundial.
Seu Kurtz morava conosco no sítio. Trabalhava com meu pai nos trabalhos
diários do sítio. Ele tinha seus problemas psíquicos. Falava sozinho e gritava
para uma entidade imaginária que ele chamava de “Ponto”.
Meu pai tinha um trator manual. Arava a terra com ele. Nos sulcos da
terra depositava sementes de verduras e legumes e frutas. Tudo crescia bem e ia
bem para a mesa, e era bem comido por todos. Eu ajudava, por vezes, na colheita
das laranjas, bergamotas, aipim, entre outros.
Minha mãe, que preparava o almoço e a janta, também cultivava lindas
roseiras e enormes girassóis laranjas e amarelos.
No final do sítio, mais para dentro da mata, havia o SOZINHO.
Um lugar escondido entre as árvores e a humidade. Onde corria um riacho
e uma nascente cristalina de água. Tudo coberto pela mata fria feito um túnel
verde de silêncio e paz.
Um lugar meu. Para onde eu corria quando queria me
esconder do Mundo. Me escondia do Mundo várias vezes.
Cresci assim. E todos os anos um caminhão de uvas subia do interior de
Bento, carregado de caixas de uva Moscatel, Isabel e de outros tipos. Todas
eram esmagadas pela máquina de madeira a manivela. E dela para o tanque. E dele
para os barris. E depois para os garrafões e para a mesa.
Todos os anos matávamos um ou dois porcos. Fazíamos linguiças, alheiras,
morcilhas, chouriços, chavianos e outros embutidos. Todos seguiam para
defumação, estendidos em varas acima dos fumeiros de eucaliptos preparados pelo
meu pai.
Eram verdadeiras especiarias. Tradição migrada de Trás-os-Montes. Norte
de Portugal. Era um evento, uma festa, um orgulho misturado com culinária. Um
tempero especial, um sabor único, uma alegria.
Eu estudava na Escola Estadual Setembrina.
Voltava a pé para casa no frio de
final de tarde. Encontrava uma casa aquecida pelo fogão a lenha, e uma cozinha que
cheirava a pão assado e café coado.
Sem dúvida a cozinha era o ponto alto da família. O local a se estar. O
encontro da família. O almoço e a janta. O fogão a lenha sempre acesso. O cheiro
da boa comida. E a enorme mesa no centro de tudo, onde todos sentavam em volta.
O bacalhau era o peixe da casa. Meu pai os comprava em peças inteiras e
os pendurava na adega. Ele, e eu, comíamos bacalhau cru com cebola crua, pão e vinho. Enquanto minha
mãe preparava a bacalhoada e as batatas podres. Assadas e recheadas com bacalhau
e azeitonas. Além dos verdadeiros bolinhos de bacalhau.
Pérolas de pura essência e sabor.
Minhas irmãs ajudavam na cozinha. Na limpeza e na organização da casa. Eu
era o guri que ia ao armazém buscar as coisas. Quando coisas faltavam.
Depois da janta íamos para sala de estar. Onde tínhamos uma tevê
colorida grande, com um grande seletor. Onde assistíamos às novelas, os
seriados e os filmes. Enquanto meu pai dormia no sofá, perto do calor do
braseiro, depositado num tacho de ferro antigo, colocado no centro da sala.
Meu pai tinha um Opala azul 71 e um Corcel laranja 77.
Aos domingos saiamos para a missa das 10 horas que ocorria na bicentenária
igreja de Viamão. Na volta para o almoço meu pai assava o churrasco de linguiça,
costela e chuleta que ele insistia em passar do ponto.
Em alguns domingos, em datas especiais, íamos à Casa de Portugal. Onde
meu pai encontrava a colônia portuguesa. Jogava Sueca, jogo de cartas, e ouvia
os Boinas Verdes. Minha mãe encontrava suas irmãs. Eu encontrava meus primos e
primas.
Eu jogava futebol com os amigos na praça que ficava em frente a casa. As
árvores eram as goleiras. O campo era uma mistura de grama e chão batido. Nosso
time era o Arcenal. A camisa lembrava a seleção Peruana. Era um Arcenal de
bombas. Jogávamos nada. Perdíamos sempre.
Certa vez nevou, ou algo parecido, enquanto jogávamos.
Jogávamos também muito futebol de botão. Adorávamos. E as tardes eram
longas e vibrantes e felizes.
Na Páscoa minha mãe assava o Folar. Um pão enorme recheado de carnes. No
Natal assava um peru com frutas. No Ano Novo meu pai assava um leitão.
Em todas essas vezes, quando tudo estava pronto, minha mãe
invariavelmente fazia a sua chamada mágica e preferida:
“Vem, gente, tá na mesa...”
Os invernos continuam frios e lentos e soprando contra as paredes
sólidas da casa de Viamão.
A casa de Viamão foi perdida na mesa da justiça, e retida na memória da
família.
A praça permanece. Mas já não existe mais o futebol. Os gols já não são
mais feitos.
Palavras são apenas palavras. Nunca deixarão de ser palavras.
Porém o sentimento é agora contido nelas. Estruturado em frases.
Contado e apresentado no poder do imaginário.
Afinal, a lembrança
sempre será um agora,
que não tem pressa alguma.
Que texto lindo!
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