Era um domingo de frio, céu limpo e
sol esplêndido. Daqueles de comer bergamota e lagartear. Um dia de outono comum
e diferente em Viamão. Dia em que eu vestiria a mística 9, a grandiosa camisa
rubro-negra do Tamoio Futebol Clube, o “Índio
Viamonense”.
Eu nunca havia jogado no Tamoio. Eu
jogava no Metropol, treinado pelo Augusto. Conhecido como Negão Augusto. O
Negão sabia das coisas. Bebias as suas. Agrupava o time. Distribuía as camisas.
Me entregava a 9. Palestrava com garra, botava os bonecos pra jogar e soltava o verbo:
- Vamo, vamo, vamo... pega, pega,
pega... tu vai mas não voltaaaa...
Eu era jovem, magro, alto e cabeludo.
Usava uma faixa na cabeça para segurar os cabelos castanhos compridos. Era um
Sócrates. Porém, claro, sem futebol que justificasse tal comparação, e muito menos o atrevimento.
Minha chuteira era preta, surrada e
emprestada. Uma chuteira usada do Breno Brito, que recebera do lendário lateral
Paulo Roberto, irmão do não menos lendário Cabeça.
O Metropol jogava domingo sim e
domingo não pelos campos de Viamão. E domingo sim e domingo não, eu metia gol.
Sabe-se lá como. Deus não explica tudo. Muito menos isso.
Eu fazia gol, afinal, não por se bom
e sim por ser centroavante. Dos que atira primeiro e pergunta depois. A bola
entrava.
O fato é que o Negão Augusto era
apaixonado por futebol, gostava da minha bola, e me botava pra correr como seu titular
da camisa 9. Naquele time azul e amarelo jogavam comigo: Wellington, Clóvis, Vitor
Hugo, Pico, Rômulo, Mario Sergio, entre outros. Não era um time ruim. Havia
entrosamento. Eventualmente ganhávamos.
E a bola rolava e a alegria
transbordava naqueles domingos.
Um tempo simples e romântico onde o Brasil
era a potência do futebol. Onde não existia o placar de 7x1. Onde a galera só
queriam jogar bola e rezar pela amarelinha, e jamais pelas camisas Europeias.
Então, não lembro por que ou como, me
chamaram para jogar no Tamoio. Acho que foi coisa do Breno Brito, que a tempos jogava
por lá. Breno sempre reconheceu bons jogadores. Entretanto, dessa vez, não sei como
foi cair nessa armadilha.
O fato, é que eu estava na área. Estádio
Edgar Leitão Teixeira, arena do Tamoio, onde, em jogos festivos, jogaram nada
menos do que Renato e Ronaldinho Gaúcho, Figueroa e Mauro Galvão, Batista e
Tarcício. Apenas para citar alguns.
Porém, aqui, falo de um Tamoio ainda
sem a cara atual. Com as antigas arquibancadas de madeira e com o olhar
nostálgico, ao fundo, do Castelo Branco. Ele ainda sofreria, com o apoio do
então Prefeito Tapir Rocha, as alterações em direção aos dias de hoje.
Marçal era o nosso treinador naquele
domingo de sol. Em campo, além do camisa 9 que vos fala, Orfeu no gol, João
Luis e Breno Brito na zaga, Cédio, Cadu e Nenê Balaca no meio e o rápido
Mameluco no ataque, entre outros, que agora não me recordo.
Após a preleção, uniformizados,
entramos em campo. Para jogar contra quem? Metropol, o Leão Viamonense. Sim, é
verdade, meu ex-time.
Ainda antes de colocar o pé direito
no gramado meus olhos alcançam o Negão Augusto. Cumprimentei-o. Ele virou e lascou:
- Bah, então te bandeastes pra esses
lados...
É um sentimento estranho estar do
outro lado, quando até pouco tempo você estava no mesmo lado. Alguns jogadores,
amigos, do Metropol, também me cumprimentaram.
O Juiz apita. Inicia a partida. Está valendooooo!!!
A bola
quica no gramado alto e irregular do Tamoio, amainada pela habilidade de alguns
e judiada pela canela de outros. Sol, suor, confronto, tensão, o barulho da batida na
bola, o pequena público na arquibancada e a gritaria em campo. Nada mais. Nada
de gol.
Puxo pela memória e me recordo de um
lance de trivela. Pimba. Beleza. Só que não. A bola sem rumo rola pela lateral
do campo.
Então o rápido Mameluco cruza a bola
em frente a área. Eu a domino. Um rápido olhar para o gol. Disparo. A bola se
perde sobre a trave. Olhei para o banco. Negão Augusto estava em pé de braços
cruzados. Era o gol que eu deveria ter feito. O gol que jamais fiz com a camisa
9 do Tamoio.
O segundo tempo não foi muito
diferente. Em determinado momento fui substituído por outro centroavante. Saio de campo com jeito de cusco pedindo carinho e seguido
pelos olhos do Negão Augusto.
Do banco eu assisto a cabeçada certeira em
direção ao gol. Feitooooo!!! 1 a zero. Atuamos pelo resultado, e vencemos o
Metropol.
Negão Augusto, na beira do campo, olha
pro banco e me encontra sentado. Não disse nada. Hesitei, e também não falei nada. Não
havia o que dizer.
Chuveirada, cervejada, muita flauta e o escambau, enquanto
caía a tarde em Viamão e o sol dobrava no horizonte.
No domingo seguinte eu não entrei em
campo. Em nenhum outro domingo eu entrei em campo. Eu nunca mais vestiria a 9,
seja do Tamoio ou não.
Tirei o time de campo. Pendurei as
chuteiras. Melhor, devolvi-as ao Breno Brito. Não era pra mim.
Assim, fui bandear para outros lados longe
dos gramados de Viamão. Coloquei o pé na estrada em busca de meu espaço.
Me questiono porque não fui falar com
o Negão Augusto. A frase não dita que ficou dependurada em alguma forma de
inquietação e dúvida se esvazia com o passar dos anos.
Águas passadas não movem moinhos. É
pra frente que se anda. Enfim, a melhor defesa é o ataque, não é mesmo?
O tempo e a idade nos fazem enxergar
erros, mas também acertos. Nos faz perseguir uma identidade e um pertencimento. É como certa vez disse o Professor
Rui Carlos Ostermann:
“A idade é, sobretudo, a acumulação de
experiência. É uma espécie de esclarecimento sobre as coisas que acontecem. É o
modo como a gente já fez coisas, já passou por elas, tomou decisões a respeito
delas, voltou atrás, se corrigiu e até já ficou quieto. É um amplo quadro,
dentro do qual a gente consegue transitar para cá e para lá e vai acrescentando
aquilo que a gente é...”
Resta
comigo a memória afetiva e o carinho de uma tarde de sol, de um domingo de
futebol, de uma camisa 9, de um gol que não veio e de um Tamoio eterno.