quarta-feira, 30 de novembro de 2016

UM TRISTE ACORDAR



“A vida continua.
Certas coisas que pareciam mortas
estão agora vivas ou, pelo menos, mexem-se.
Ausentes, dominam-nos.
não é para nós que utilizam palavras,
que insistem,
não é para nós!
Estes grandes ornamentos, estes sábios discursos
fluem em visões, em ondas, como se não no presente.
Ter-se-á o presente extinguido?
A vida continua tão improvavelmente.”
António Ramos Rosa

Um triste acordar dum 
triste dia

Um amanhecer esmeralda, 
pútrido. 

Distante de mim,
uma Dor se aloja. 

Um vazio  álamo 
constrói pontes. 

E, eu já não sei mais 
- como antes soubesse - 
para que lado seguir...

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

UM A CADA MILHÃO






Meu amor eu gostaria de escrever para você o poema definitivo.  

Um poema que matasse a sede como um gole dágua bebido no escuro da madrugada.  

Um poema que gemesse como um pobre animal palpitando ferido.  

Um poema sem outra angústia que não a sua misteriosa condição de poema, triste, solitário, único, ferido de mortal beleza.  

Tão lindo que só poderia ser lido dançando.  

Um poema solto e livre como uma pedra largada no indizível infinito. 

Um poema que assassinasse o poeta e que te matasse de amor. E que chegasse até você como um trovão para moer teu cérebro, para retalhar tuas coxas.

Um poema para dilapidar a riqueza de tua juventude e incinerar teu coração de carne.

E de tuas cinzas fabricar a substância enlouquecida das belas cartas de amor.


sábado, 1 de outubro de 2016

TELHADOS DE SETEMBRO




           

Quando 
teu setembro vier
vamos setembrinar 
nos solstícios
de primaveras passadas.


E se o Guimarães é Rosa
e o Jorge é Amado
a nós resta o consolo
de amores dispersos.


Mas quando
meu setembro vier
e chegar repentino
e nos encontrar
seremos pegos
admirando
o beija-flor
a sugar o solitário hibisco
enlaçado no telhado
em que gatos
adormecem.


Triste então
é o agosto
que passou entalado
e despercebido   
no imenso frio
de nossos
corações.
   
              

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O PARAÍSO SÃO CARROÇAS DE MELANCIAS!









Meu pai dirigia para lá numa DKV de cor café com leite. Através dos sonhos de Santo Antonio. Ainda pela estrada antiga. Ainda pelo final da década de 60. Ainda pelo mundo antigo.

Meu pai adorava aquele carro “é motor dois tempos, anda bem, é econômico, esses alemães sabem mesmo construir carros..."

A casa, de madeira verde envelhecida e de telhas de barro, ficava em uma esquina na primeira curva na entrada da cidade de Santa Terezinha. Lugar que, por alguma razão o acaso não esclarece, os portugueses haviam escolhido para gozar os verões.

Todas as ruas eram de chão batido e haviam poucas cercas. A casa ficava a 5 ou 6 quadras do mar. A sua frente ficavam comoros de areia e mais comoros de areia, onde anos depois, as mãos de mau pai construiriam a nossa casa da praia.

Lembro da bomba verde de ferro sugando água do poço. Água fria, salobra e de cor duvidosa. Bombávamos aquilo todos os dias.

Lembro da louça antiga e pesada. Xícaras lindas, coloridas, grandes e pesadas contendo o leite tirado de garrafas de vidro.

Lembro do cheiro do café passado no coador gasto de pano marrom.  

Lembro da comida armazenada em geladeira com barras de gelos enormes envoltos em serragem.

Lembro de meu pai plantando coisas e colhendo coisas no fundo do quintal atrás da casa.

Lembro dos sofás enormes e antigos e do balançar e estalar de suas molas.

Lembro de redes coloridas, estendidas e soltas ao vento da varanda e seus movimentos feito um pêndulo do leste para o oeste.

Lembro dos sons do assoalho da casa, do ranger, enquanto caminhávamos por ele.  

Lembro de melancias, muitas melancias, carroças de melancias, verdes, listradas, vermelhas, redondas e doces.

E lembro do barulho da chuva que caia a noite sobre o telhado de nosso sonhos.

Uma chuva fria, calma, segura, lenta, gostosa. Um tipo de chuva que já não existe mais. E após a chuva, restava somente um escuro silêncio entre um concerto de sapos.

Tudo tão passado quanto uma caixa de relógios esquecida em algum canto da memória.

Pela manhã, seguíamos a pé para praia numa caminhada longa e distante, onde eu não deixava da mão de minha mãe.

Entre outras coisas levávamos uma esteira de vime e um guarda-sol de madeira alaranjado.

Sentávamos em frente a um mar com águas de vários tons de marrom, e meu pai, com seus calções da época, sumia a braçadas mar adentro.

Eu e minha mãe fazíamos castelos na areia.

Seu braço afundava até a altura do ombro dentro de um buraco cavado. E de lá, sacava areia molhada. Fios finos de areia molhada cobriam nosso castelo de areia enquanto o sol quente e amarelo cobria nossa manhã.

O mundo ainda era uma criança brincando na areia com a sua querida mãe.

São boa lembranças. Boas o bastante para traze-las de volta agora. 

Enquanto isso, lá fora, neste presente caótico, 8 milhões de veículos roncam seus motores.




sábado, 27 de agosto de 2016

VOU CONTRATAR UM POETA PARA ESCREVER ESSE POEMA



            

Isso é como uma parte do poema. 
Não o todo, 
o todo não está aqui. 
Partiu.


Isso é como uma luz antiga. 
A mais antiga e amarela, 
já não lembrada, 
já não mais vista. 
Perdida.


Isso é como um contexto vago 
esboçando
um outro contexto vago.


Isso é como escrever
tendo ao lado a velha tristeza
como vizinha.
Alegria, júbilo, gozo, felicidade...
Nada sobre isso é possível 
escrever.


Resta então
dizer o indizível,
através das palavras
de Vinicius,
"Essa inércia 
cada vez maior 
diante do Infinito!" 


Eu dobro a esquina do esquecimento, 
procuro bifurcações e 
encontro o passo.


E se você nunca 
esteve lá,
não é agora que irá
alcança-lo.



domingo, 31 de julho de 2016

TALVEZ HOUVESSE UM TEMPO



             


Onde o sono
permanecesse renovado
sonho.

Onde as manhãs
não rastejassem pelo chão.

Onde a dor refletisse
alivio
feito andorinhas livres.

Onde juntos colhêssemos
tulipas negras ou vermelhas
entre verdes vales.

Onde eu, você e a lua
fossemos uníssono.

Talvez houvesse um tempo
e um lugar
de terrível e imaginária beleza
onde eu existo
e penetro em você
a beira de um despenhadeiro
onde todos os nossos
prazeres desaguam.

Talvez houvesse um tempo
onde simplesmente lá
nos encontrássemos.

Talvez houvesse
um tempo,
talvez...